CORTINA DE VIDRO

                            

              A Cidade Situava-Se No Antigo Território Indígena “Vale Da Brisa”, Nome Que Acabou Por Originar A Atual Designação Do Lugar: Brisal. Brisal, Ou Vale Da Brisa, Como Preferir, No Princípio, Era Uma Região Extremamente Pacata E Quente, Habitada Apenas Por Índios E Uns Raros Aventureiros Que Se Decidiam Por Arriscar A Sorte Ali. Um Dia, Porém, Tudo Começou A Mudar. Um Daqueles Pioneiros, Quase Ao Acaso, Descobriu Ouro Por Aquelas Bandas, Iniciando Verdadeira Debanda De Gente Por Lá. A Cidade Das Brisas Começava A Sentir O Cheiro Forte De Seu Primeiro Ventoral. E Ele Vinha Com Força, Derrubando E Queimando Árvores, Matando Gente, Tingindo Rios De Vermelho, Loteando Terras E Construindo Casas.
            Algum Tempo Depois E A Cidade Já Se Achava Irreconhecível, Tamanha A Mudança Ali Falseada. Fábricas, Casas, Prédios, Condomínios, Bancos, Praças, Pessoas; Igrejas, Favelas, Padarias, Mercados, Bancos, Financeiras, Empreiteiras, Loteria, Botecos, Cinema, Teatro, Bares, Lojas De Roupas, Roupas De Lã, Esqui, Pessoas; Ponto De Ônibus, Rodoviária, Ônibus, Carros, Charretes, Cavalos, Pessoas, Prefeitura, Escolas, Creches, Farmácias E Tudo Mais Que Se Possa Imaginar... A Cidade Se Agitava E Se Contorcia No Olho Do Furacão.
            O Antigo Lugarejo Pacato Agora Já Dava Seus Primeiros Pitacos Na Economia Mundial. A Voz Rouca De Seus Diplomatas, Gagos E Fanhos, Era Ouvida E Respeitada Por Todos...
            O Mundo, Nessa Época, Já Não Guerreava Tanto. Ricocheteava, Apenas, Nas Mãos De Uma Só Nação. Tudo Gravitava Em Torno Dela. O Mundo Achava Que Sem Sua Influência O Caos Voltaria A Reinar. Mãos Verdes Com Caras De Presidentes Empunhavam O Binóculo E Acompanhavam Com Seus Olhos Esbugalhados, Teleguiados, O Tributar Do Planeta. O César Da Nova Era Se Impunha Com Mãos Atômicas. 
            O Mundo Seguia Girando Capenga, De Bengala Velha Na Mão, Caindo De Banda, Tentando A Custo Se Equilibrar No Fio Fino Que Atravessa O Abismo Do Capital.
            Mais Um Dia Amanhece Sobre A Nobre Capital. Sim, Brisal Agora É Capital.
            Mas O Que É Isso? Algo Acontece!  As Pessoas Correm Em Desatino, Trombam, Tropeçam, Caem Ao Chão. Carros Batem, Dão Freadas Bruscas. A Mulher Reclama, O Filho Chora, A Beata Reza, O Político Se Esconde, O Policial Atira, O Bandido Se Arrepende... O Que Está Acontecendo Afinal? Estará Instalado O Caos, O Juízo Final? O Que É? Diga Logo, Não Faça Suspense!
            – De Onde Veio Isso?
            – Só Pode Ter Vindo Do Espaço. Coisa De ET!
            – É Um Sonho? Eu Estou Sonhando Mamãe?
            – Tenho Que Me Esconder.
            – Quero Ver Eles Me Pegarem Agora.
            – Meu Deus, Vou Me Atrasar Para A Entrevista.
            – Deve Haver Um Buraco.
            – É, O Melhor É Sentar E Ver O Que Acontece.

            Os Comentários Eram Variados, Uns Se Mantinham Calmos, Outros Assustados, Outros Curiosos E Indagadores, Mas Apesar De Tudo O Medo Trazia A Todos Uma Certeza Sobre Tudo: Alguma Coisa Havia Mudado.
            No Centro Da Cidade, Dividindo A Rua Principal, Cortando Prédios, Praças, Carros E Bancas De Jornal, Uma Imensa Cortina De Vidro Transparente, Impenetrável, Se Estende Em Todas As Direções Rumo Ao Infinito. O Pânico É Total. Pessoas Correm, Trombam Umas Com As Outras, Chocam-Se Com O Vidro Tentando Atravessá-Lo. Helicópteros Das Forças Armadas Tentam A Todo Custo Vencer O Inesperado Obstáculo. Inútil! O Vidro Se Entende Até O Céu, E Parece Ir Além, Pois Nem Os Satélites Conseguem Passar.
            Na TV O Noticiário Informa Em Plantão Especial O Incomum Episódio Que Se Repetia Por Todo O Mundo.
            Mas Esperem, Ainda Não Acabou! O Pior Está Por Vir! Sabe Aquele País Que Se Outorgava O Monopólio Do Mundo? Aquele Que Roubara De Adão O Testamento Do Paraíso! Pois Bem, Desapareceu! Isso Mesmo, Sumiu Sem Deixar Vestígios. O Mundo Acordou De Pernas Pro Ar. Tudo É Uma Confusão Que Só Vendo.
            O Turco Da Padaria Reclama Que Não Pode Cobrar A Dívida Do João Do Açougue. A Secretaria Protesta Por Ter Perdido O Emprego No Escritório Que Fica Do Outro Lado; O Advogado Ameaça Processar O Dono Do Vidro, Pois Partiu Seu Escritório Ao Meio. Tudo É Caos, Enfim.
            O Mercado De Ações Acha-Se Perdido, Dividido. O Que Fazer Agora Que O Dono Do Mundo Sumiu? Uns Dizem Que É Um Truque Para Testar A Fidelidade Dos Aliados, Outros Afirmam Ser O Teste De Uma Nova Arma De Guerra. E Os Fanáticos, É Claro, Juram Ser O Fim Do Mundo Chegando. Cansados De Tanto Esperar Esse Fim Do Mundo Que Parece Estar Vindo Montado No Lombo De Um Jumento, Tamanha A Demora, Os Homens Da Bolsa Resolveram Lotear O Paraíso, E O Inferno Também, Para Quem Interessasse. Assim, Se A Crise Não Passar, Ao Menos Os Negócios Estariam Salvos, Mesmo Que A Alma Perdida.
            E Seguiram-Se Longos Meses Assim...
            Nos Primeiros Dias Após A Imensa Surpresa, O Único Som Que Se Ouvia Era De Sirenes Esparsas Que Percorriam Sozinhas As Ruas Desertas. Na Televisão, Reprises De Novelas E Desenhos Animados Eram Mesclados Com Plantões Repentinos, Que Mais Repetiam que informavam. Alguns canais exibiam filmes bíblicos proféticos ou de guerras interplanetárias, julgando o tema mais adequado à ocasião. As pessoas se olhavam desconfiadas. Mercados, padarias, açougues, farmácias, lavanderias e sorveterias mantiveram suas portas fechadas. Ninguém saiu de casa por um longo tempo. Até que, um dia, alguém resolveu esticar o pescoço e ver o que havia lá fora. Um outro alguém, ouvindo o barulho da porta a se abrir, resolveu dar uma olhadinha no que aprontava o vizinho. O outro, que não é bobo de ficar para traz, foi ver também. Assim, em pouco tempo centenas de pessoas já estavam de novo a caminhar pela rua. Surpresas sim, pois que tudo era novidade. Mas, como acontece com tudo quanto é novidade, a surpresa passou logo.
            Algum tempo depois a vida começava a voltar ao normal. A cidade, agora dividida, nunca esteve tão unida. Todos os dias parentes e amigos se encontravam em frente a grande cortina de vidro para se ver. Mas, apenas isso, já que a cortina era espessa e não passava som algum.
            Passado o susto inicial, logo a economia se acertou. As editoras se apressaram em apagar dos livros de história o nome daquela nação que já não existia mais. Qual é mesmo o nome dela?  Ah!... Quem se importa? Já não existe mesmo. Erga-se um memorial, já pichado, homenageando-a e pronto, está resolvido.
            E por falar em pichação, não demorou nada, é claro, e a cortina começou a ser pichada. Isso no subúrbio, porque no centro o prefeito contratou artistas consagrados para produzirem grandes obras de arte. Foi destinada também uma pequena parte da cidade, chamada de Parque da Saudade, para os encontros com os parentes que ficaram para o outro lado. E a vida continua, tem que continuar! 
            Do outro lado do vidro, uma pequena movimentação começava a tomar corpo. Com o vidro dividindo a cidade, as partes teriam de tornarem-se autônomas. Afinal, a prefeitura com toda a câmara de vereadores ficara do outro lado. Logo políticos oportunistas de oposição proclamavam em praça publica, na praça dividida, a necessidade de se instaurar um novo governo. E vamos às urnas, queimá-las!
            Embora os esforços acrobáticos do governo em conter as centenas de seitas proféticas, apocalípticas e fanáticas que se proliferavam feito pulgas por toda meia cidade, nada parecia adiantar. O fenômeno, de caráter surreal, havia mexido com a cabeça das pessoas.
            Em uma das ruas, agora transformada em beco, crianças jogam bola. A mãe observa despreocupada o grande paredão branco que se estende diante de sua janela. Um homem cultiva o quintal, dá algumas picaretadas no vidro tentando apanhar as rosas que ficaram do outro lado. Logo desiste. Crianças desenham. Barracos se escoram à nova parede. Tudo parece indicar que a vida começava a se ajeitar.
            Passados meses, o vidro já não era tão claro. Já não se via o outro lado nem nas áreas sem pichação. Estava embaçado, opaco. Quase uma parede branca a se estender ao infinito.
            Sem forma de comunicação, aos poucos, parentes e amigos deixados do outro lado foram esquecendo-se. Era como se o muro sempre estivesse ali, sepultando o passado. Vida que segue!
            A bolsa recuperou-se da queda. Como o fim do mundo não veio, quem comprou ações do céu acabou falindo.
            Um dia, quando tudo voltara ao normal e parecia não haver mais novidades, a cidade acordou com um novo susto. O muro havia desaparecido. Dessa vez as pessoas não se esconderam. Foram para a rua e pararam estupefatas frente ao que havia sido vidro. Olhavam o outro lado. Eram os olhos da multidão sem visão que formavam o muro agora. Um muro de olhos a mirar, procurando algo que não estava mais ali. A multidão se alinhava em sua busca silenciosa. Os olhares se mantinham calados. O que se via? Ninguém sabe.
            Naquele dia as pessoas ficaram até tarde. Não atravessaram o limite que imaginaram. À luz de fogueiras ou de estrelas, observaram o outro lado.  Olhos baços. O vidro já não estava no espaço. Estava em todos ali. Cacos nos olhos. O que se via? Muros. Cada um o seu.
            Do outro lado não havia ninguém. A cidade estava deserta. Prédios devastados indicavam uma guerra. Nuvens escuras, sujas, pesadas, faziam o tempo parar, se arrastar para romper  a atmosfera densa dos pensamentos torturados.
            A terra da brisa jamais seria a mesma. O mundo nunca mais giraria como tal. Para fronteiras físicas não há mais sentido. Tudo esta nos olhos de quem vê. Para alguns o muro ainda esta lá. Impenetrável. Perene. Para outros, nunca existiu.
            Brisal despertava do sono com portas, janelas e grades nos olhos de seus habitantes. Dizer-se cego é fantasia numa terra onde ninguém mais sabe o que é ver.
            Alguns rompem o casulo, atravessam a casca, fronteira consciente da inconsciência. Do outro lado, na terra devastada, afundam os pés descalços. Medos fossilizados, pesadelo dicotômico, tomando forma. Inconsistente sombra tangível do inconsciente.  Tão real como a sensação de um sonho ruim ao acordar.
            Fanáticos já não mais há. A realidade os dizimara. Sob os escombros da memória próteses de pernas sem dono figuram a inércia.
            Todos caminham juntos, sempre sozinhos, pelos escombros. O tudo e o nada se tornam um, partes de um todo que é completo em cada uma de suas partes.
            Políticos noctívagos preparam-se para retomar o poder. São cobras que se alimentam de peçonha.
             Cada elemento social preserva a síntese de sua sociedade, DNA viral se multiplicando em organismo alheio. Caminhar por ali era excursionar pelo pior de si. E todos nós também estamos ali, em nós.  Realidade física ou mental? Difícil responder, tamanha a realidade irreal de tudo ali.

            Mais um dia. Ao acordar, Brisal segue pacata. Indígenas preparam cerimônia ao Deus Sol. Tudo segue tranquilo. A sensação é que sempre permanecerá assim. O tempo ainda não havia passado. O paraíso original não fora manchado. O tempo permanece pequeno, criança a dormir em nossas mãos. Enfadonho, golfando sonhos. Medindo o comprimento das ameaças. Fortalecendo braços, pés, mãos e pernas.  Tudo é pequeno. Ainda é tempo... Ainda há tempo...


  AUTOR: Sávio Damato

Sob o Outro Lado da Moeda

De Platão a Descartes e de Descartes aos pós-modernos sempre se pensou e pensará sobre a idiossincrasia idílica do real. Submersos na ilusão cotidiana, nossos olhos nos enganam, pintam fantasias para a mente distraída.
            O que é real afinal? Podes, acaso, ter certeza que estás acordado e não em um sonho?  “Penso logo existo” ou penso logo: existo!  (?)
            Alguns, da Física, já afirmaram a ilusão coletiva em que vivemos. Tudo não passa de um aglomerado de energia em movimento formando aquilo que queremos crer, afirmam eles. Será a mente um esconderijo da realidade?
            Como ter certeza que estamos aqui, que o quê vemos é exatamente o quê está ali? Será a sua imagem refletida pelo espelho a mesma que vejo em você? Ou será que o espelho mente, mostrando apenas aquilo que você quer ou consegue ver?
            Como escapar dessa roda gigante, desse poço sem fim, dessa bizarra tentação do pensar...?
            Ariane também refletia sobre isso, e debatia o assunto sempre que tinha a chance. Em geral, as pessoas fugiam dela, mas algumas sempre restavam para ouvir seus argumentos. Talvez as que se consideravam mais loucas que ela e, portanto, não acreditando correr risco algum. Ela sempre foi aficionada por literatura e ciência. Devorava tudo o que via pela frente. Seus gêneros favoritos eram todos aqueles que, de alguma forma, lhe acrescentassem conhecimento. Até o dicionário já leu algumas vezes. Observe, eu digo leu, e não consultou.
            Agora estava com 23 anos. Uma moça bonita, de belos cabelos ondulados, altura mediana, olhos adocicados, sorriso claro e um temperamento de Rapunzel. Apesar dos admiráveis dotes físicos que a acompanhavam Ariane nunca havia namorado. Jamais se interessara por rapaz algum, até este dia.
            Quando deixava a biblioteca, chocou-se violentamente com ele, Marcos, e ao apanharem juntos os livros, que rolaram escada abaixo, seus olhares se encontraram e o destino de Ariane mudou para sempre.
            – Ai... Ele é tão bonito! Você precisa conhecê-lo, Cláudia.
            – Ele te convidou para sair?
            – Sim. Me ligou hoje.
            – E como conseguiu seu número?
            – Não sei! Talvez eu tenha deixado cair de algum livro quando eles rolaram pela escada. Ah!... Mas isso pouco importa! O que interessa é que estou apaixonada, e isso não acontece com freqüência.
            – Não acontece mesmo! Há quanto tempo nos conhecemos? Dois três anos?
            – É, acho que é isso.
            – E nesse tempo todo eu nunca vi você se interessar por ninguém. É realmente impressionante, quase um milagre.
            – É que eu estava muito ocupada. Mas agora cansei dessa vidinha monótona. Quero um pouco de aventura. O destino finalmente abriu suas portas para mim.
            – Já falei que estes livros vão acabar te enlouquecendo. Faz bem em sair um pouco, ter vida social, pra variar. Você vive enfurnada no quarto ou na biblioteca, estuda e lê o dia inteiro. Nem têm amigas.
            – Tenho você!
            – É, mas, fora eu não, existe mais ninguém.

            Ariane morava sozinha em uma quitinete alugada no centro da cidade. Quando começou a faculdade duas garotas dividiam com ela o quarto e sala, mas logo se deram conta que não daria certo e cada uma seguiu seu caminho. Cláudia era a única amiga com que Ariane podia contar. As duas se conheceram na biblioteca, num incidente parecido com o ocorrido com Marcos, só que dessa vez com uma dúzia de canetas se espalhando pelo chão da biblioteca.
            – Psiiiiii....!!!!!! – fez a moça que zelava pelo silêncio.
            – Acho que hoje estamos conversando demais Ariane.
            – É verdade – disse rindo – hoje eu estou muito ansiosa. Mal posso esperar a noite chegar.
            – Agora vamos estudar. As pessoas já estão nos olhando com cara feia.
            – Isso sempre acontece comigo. Às vezes acho que sou a única pessoa deste mundo que não pode conversar. – falou, rancorosa, aumentando a voz e voltando a se debruçar, em sinal de protesto, sobre os livros.
            A noite custou a chegar, mas, enfim, chegou. Ariane não demorou nada para se arrumar, afinal, era tão raro uma saída à noite que ela já não tinha praticamente nenhuma roupa para a ocasião. Marcos, as nove em ponto, interfonou para seu apartamento.
            – Nossa, que pontual! – disse, olhando aflita para o relógio.
            Encontraram-se à porta do prédio, cumprimentando-se com um singelo beijo no rosto, acompanhado de perto pelo porteiro.
            – Esses porteiros... são tão indiscretos. – comentou Ariane – vamos sair daqui! Onde está o seu carro?
            – Eu vim a pé.
            – Ah....!
            E seguiram, caminhando, até um famoso restaurante de frutos do mar localizado a duas quadras dali.
            – Mesa para dois, por favor! – disse o rapaz ao garçom.
            – Sim, Senhorita? – respondeu o garçom, sem sair do lugar.
            – Mesa para dois – repetiu Marcos.
            O garçom continuou imóvel, olhando de forma estranha para Ariane. “Será que ele me conhece de algum lugar?” pensava ela, já um pouco constrangida com a situação.
            – O senhor pode por favor nos providenciar uma mesa – disse ela, por fim.
            – Com todo prazer – respondeu o garçom, se retirando de imediato.
            – Não se fazem mais garçons como antigamente – retrucou Marcos, mal humorado.
            Ariane riu e lhe deu um beijo no rosto. Marcos olhou admirado para a menina, que corou instantaneamente, também admirada com seu gesto impensado. “Ai, que vergonha, que vergooonhaaa!!! Por que eu fiz isso, meu Deus?” Pensava ela, enquanto sentia o rosto queimando.
            Não demorou e o garçom voltou para conduzi-los ao lugar á mesa.
            – Faça o favor de me acompanhar, senhorita!
            O jantar seguiu delicioso, apesar de um pequeno incidente com os pratos. Marcos era de inteligência e humor fascinantes. Tudo parecia um sonho, um conto de fadas, como nos livros. E tudo seguiria assim, perfeito, se não fosse por um pequeno detalhe: Quando já haviam terminado o jantar e saboreavam juntos a garrafa de vinho, um homem, trajando preto, após umas palavras ao garçom, se aproximou da mesa do jovem casal.
            – Senhor Marcos Villamport?
            – Sim!
            – Por favor, se levante e venha comigo. Vamos evitar uma cena aqui!
            – O que está acontecendo? – Ariane perguntou aflita.
            – Não se meta mocinha, esse é um assunto do qual é melhor ficar fora.
            – Ele tem razão Ariane. Fique aqui, vai ser melhor para você.
            Marcos se levantou, entregou um dinheiro para o garçom e saiu com o homem. Todos no restaurante olhavam indagadores para Ariane, que estava extremante envergonhada. Ela levantou, e sem olhar para os lados, saiu do restaurante.
            Começou a caminhar de volta para casa e percebeu, em meio ao turbilhão de seus pensamentos, que estava sendo seguida. “O que vou fazer agora?” se perguntava enquanto apertava o passo na tentativa de despistar os homens. Os dois se aproximavam e, por se julgar bem próxima de casa, Ariane começou a correr. A noite se transformara em um terrível pesadelo. Ariane corria, os homens se aproximavam, e quanto mais corria, como num sonho, mais distante parecia ficar. “Isso não vai acabar bem. Nos romances nunca acaba!” pensava ela, enquanto corria.
            Agora, de salto quebrado e pé torcido, a menina se recostava no muro à virada de uma esquina, chorando, a espera de seus perseguidores, que se aproximavam, ou de um milagre, que a salvasse.
            E foi que o inesperado aconteceu. Antes que os homens a alcançassem, do outro lado da rua, Cláudia vinha passando. Um grito de pavor se precipitou da garganta de Ariane ao chamar o nome da amiga. Ariane correu para o outro lado da rua. De um lado os homens vinha chegando, do outro, Cláudia permanecia estática, sem entender, e dá rua, sem que Ariane percebesse, um carro vinha e a atingia em cheio, atirando seu corpo de encontro ao asfalto morno.
            Não demorou nada para a ambulância e os carros de polícia chegarem. Mas chegaram tarde, Ariane estava morta. O relógio da igreja, perene e insondável, marcava o horário do óbito: Meia noite e cinco minutos. Cláudia se debruçava sobre o corpo inerte e ensanguentado chorando a amiga perdida. Os dois homens desapareceram. De Marcos, ninguém nunca mais ouviu falar.
            Essa foi uma das verdades. Porém, sempre existe o outro lado da moeda, a outra face da realidade que merece ser vista. Enquanto a polícia tentava isolar o corpo, na fatia oposta da cidade, a oeste dali, em uma clínica psiquiátrica, Ariane entrava em coma.
            – O que nós vamos fazer doutor? – perguntava a enfermeira, penalizada.
            – Infelizmente não há mais nada que possamos fazer, Cláudia.
            – Mas ela ainda está viva, deve haver alguma coisa...
            – Para nós ela está viva, mas em sua mente ela acredita que morreu. Não vai demorar muito para que o corpo também se convença disso. O coma é irreversível.  
            Cinco minutos mais tarde e os aparelhos acusavam a parada cardíaca e, embora tudo fosse feito para tentar voltá-la à vida, Ariane estava morta. Já havia morrido, uma hora antes, no acidente.
            – Hora do óbito: Uma hora e cinco minutos. – disse o médico.
            – Ao menos ela vai descansar. Eu não aguentava mais vê-la sofrendo assim. Já faz cinco anos desde que chegou aqui.
            – É, mas agora acabou. – disse o médico, retirando as luvas e atirando-as ao lixo.
            – Doutor Marcos, acha que ela sabia que eu a considerava como uma amiga?
            – De alguma forma sabia, Cláudia. Do jeito dela, eu creio.
            Ariane tinha sua própria realidade e vivia nela, até o dia em que decidiu já ser hora de, como nos romances, por o ponto final. Essa, não era uma história com final feliz como tantas outras que criara pra si. Nessa, a personagem principal devia morrer.

            Na vida, é costume se criar histórias, muitas têm um final feliz, outras não. Todas elas fazem parte dessas muitas realidades que, queremos acreditar, são reais.

Sávio Damato

O Jardineiro Fiel


Mil sonhos de amores perfumam as flores do jardim. Um jardineiro derrama descuidado gotículas sobre pétalas delicadas. O sol é suave, a brisa mansa. O chão fofo e bem cuidado exibe a cor saudável de um rosto bem alimentado. Minhocas gulosas mergulham na terra fofa. Um grilo salta de uma folha a outra. Tudo é calma, suave balanço de harmonia.
            Mas eis que tudo começa a mudar. Um grito, um gemido. Um estalido de dor. A figura de um homem de olhos esbugalhados descortina-se a escada. Um homem alto, magro, cabelos ouriçados e olhos a saltarem das órbitas. O homem, parado no limiar da porta, parece exausto. Sua expressão é de assombro. Atrás dele gritos de mulheres a sua procura tecem uma estranha melodia atrófica.
            O homem, parado, estende a mão para as flores do jardim. Nem uma palavra escapa de seus lábios. Mas uma voz rouca, um sussurro a muito reprimido, é visto jorrando de seus olhos. O homem se atira de joelhos à terra fofa e agarra a flor roxa recém regada que lhe está mais próxima.
            As mulheres chegam à porta. São três. Aparentemente a mãe, uma filha moça e uma mais nova. Todas olham com admiração a cena. Nenhuma delas quer mais gritar. Em seus olhos, espelhos do sofrimento, pode-se ler a história que passou:
            Sr. Luis era um jovem médico. Jovem se entregou à vocação. Conheceu dona Ilda quando ainda cursava a faculdade. Donos de uma paixão fulminante, entregaram-se ao casamento. Tudo corria bem. Nascera a primeira filha, Luana. Fogos de júbilo ecoaram pela casa inteira. Uma grande festa com muitos convidados percorreu a casa do doutor.
            Um dia, porém, a casa amanheceu mais escura. Luana já tinha cinco anos. Médicos da cidade vizinha movimentaram-se na casa do amigo doutor. Ele estava dormindo! Sim, dormindo. Não estava morto. Era um sono suave, nostálgico. “Tripanossomíase Africana, a doença do sono. E ela pode levar anos. Poderá jamais acordar ou simplesmente acordar amanhã”. Disse um senhor doutor.
            No dia seguinte Ilda estava sentada a beira da cama do marido, na mesma hora que sempre acordava. Ela havia preparado um belo café da manhã, o mais lindo que conseguira. Esperava que ele despertasse e arrancasse a todos do pesadelo. Jamais contaria ao marido o ocorrido, seria como se aquilo não acontecera. Mas ele não acordou. No dia seguinte a esse, a cena se repediu. E no outro dia, e no outro, e em mais outro, até que os anos se passaram. As meninas acostumaram a ir ao quarto do sono se despedir para a escola. A mãe sempre estava lá, e esperava. Os anos passaram e um dia, quando a esperança já estava de malas prontas para partir, quando Ilda não podia mais contar o número de fios sem cor de sua cabeça, ele acordou.
            Nesse dia, que começou com os gritos das mulheres e o jardineiro a regar o jardim, houve uma grande festa. Outra vez toda a cidade desfilou na casa do Doutor. O Jardineiro foi o único a não comparecer. Como em um despertar rotineiro, o doutor contou o infinito de sonhos e pesadelos por que passou. Os médicos, na sala, riam das histórias e diziam querer pesquisar. A mulher olhava calada, abraçada à filha mais nova, três aninhos apenas. Luana, a mais velha, já tinha 15. Dez anos havia se passado.
            Naquela noite, todos foram dormir tarde e, quase sem acreditar, Ilda foi ao quarto do sono desejar boa noite ao marido desperto. Não dormiriam juntos naquela noite, ainda havia muito por conversar. Ele dormiu.
Pela manhã a casa cheirava a café. Ilda foi acordá-lo. Ele ainda dormia. O Doutor nunca mais voltou a acordar. Dormiu nos anos que alcançaram o casamento da filha, a morte dos amigos, do jardineiro e da mulher. Dizem que pouco antes de seu suspiro final seus olhos se abriram e deram com o da menina mais nova, agora bem mais velha. Era quem cuidava dele, a filha do jardineiro. Ninguém nunca soube o que disseram...



Sávio Damato


AUTOR: Sávio Damato

Baudelairiando



Dezembro. Estou à mesa de um bar.

O tempo transborda e já posso sentir as partículas ácidas inundarem em corrente meu corpo e minha alma.

Sorrio. O amigo ao meu lado também sorri. Compartilhamos a mesma sensação. O corpo se torna mais sensível... Em breve os músculos do rosto pedirão um minuto de paz, doloridos de tantas risadas que são obrigados a suportar. Se é verdade que rir é o melhor remédio, nesta noite estaremos nos curando de todos os males. Mesmo daqueles que não nos pertencem.

Outro bar... Mais risos... Uma euforia vibrante, forçada a se conter, compactada no frasco pequeno do corpo. Irradia...

Meus olhos percorrem outras mesas. Os ouvidos recolhem sons de conversas alheias e das nossas próprias. Observo. Faço anotações mentais.
Uma mulher me olha. Está acompanhada. Retribuo o olhar, provoco, invado seus pensamentos. Não sei se tenho direito de abalar os pensamentos alheios... Mas já é tarde! Ela pensa no olhar oferecido. O homem ao seu lado é velho, barrigudo, de uma barbicha ridícula. Mas há status. Ele representa conforto. Ela, beleza. Sente vontade de mim... Flerta... Agora já invade meus pensamentos também...

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AUTOR: Sávio Damato

Fábula dos Três Potes


Em uma época perdida, onde os calendários ainda ansiavam por existir, três homens caminhavam juntos em busca de água. A nascente, ainda mais antiga que nossa história, saciou por gerações as muitas sedes do povo.

Os três homens caminharam. Lá chegando avistaram três potes postos à beira da fonte, parecendo esperá-los. Aproximaram-se curiosos e logo perceberam que em cada um havia uma escritura. No primeiro, lia-se: “Sabedoria”; no segundo: “Fortuna”; e no último, colocado bem ao centro, lia-se: “Dor”.

Aproximando-se, dois deles se apressaram em apanhar cada qual o que mais lhe convinha. O primeiro lançou mão sobre a Fortuna, o outro à Sabedoria, e ao último, menos hábil, restou o pote da Dor.
No momento em que o terceiro tocou seu vaso uma figura mitológica surgiu sobre as águas.
(Impossível seria descrevê-la, mesmo os três não o conseguiriam, uma vez que cada um viu o que viu. E nós, por vez, vemos o que imaginamos).

Com voz suave ou de trovão, lhes disse a tal aparição:
– Cada um dos três vasos possui um poder especial. O da Sabedoria sempre estará cheio até a borda de águas claras. Ao beber, seu portador poderá saciar a sede, tanto do corpo quanto do espírito, enchendo-se de saber. O pote da Fortuna, de igual modo, estará cheio de moedas de ouro, esperando pela vontade ou necessidade de se gastar. O da dor, pelo contrário, permanecerá vazio, enchendo-se da dor de seu portador ou da de quem deste se aproximar. Desta forma, ao primeiro, nunca faltará saber; ao segundo a Fortuna e ao último sempre se fartará de felicidade, uma vez que toda dor, angústia, tristeza ou mal, será recolhido por esse vaso.

Os três homens, maravilhados, se encheram de júbilo e sorriram-se, felizes pelo presente que os deuses lhes concediam.

A aparição continuou, em tom ainda mais grave:

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AUTOR: Sávio Damatomato

A menina da Janela




Todas as tardes quando eu passava por aquela janela, ela estava lá. Linda, risonha, com seus cabelos dourados emoldurando a mais bela escultura em forma de menina. Melissa, esse era seu nome. Melissa nunca saia de casa, via o mundo passar por aquela janela e o mundo passava e a via na janela. Não era possível não notar seu sorriso, seu olhar cristalino mirando o céu. Melissa era daqueles anjos raros que pousam na terra para espantar o negrume da tristeza dos corações humanos. E para isso bastava sorrir. Seu sorriso iluminava.


Quando mudei para ali, não conhecia ninguém. Minha casa ficava perto da dela, há apenas duas praças. Na praça em que ela morava havia um belo jardim, talvez cultivado pela menina, pensava eu sempre que passava por lá. Eu era um homem sozinho, de meia idade, que muito vivi e sofri pelos caminhos tortos que a vida me preparou. No meu rosto já não havia a meigura, nem a doce figura dos sonhos que sonhei quando ainda jovem. Em mim havia um homem, rude às vezes, e mais nada. O meu mundo sem sol se enchia de cor quando voltando, ou vindo para casa, via aquele rosto de luz.


Apaixonei-me. Estar ao seu lado era tudo que podia querer. Uma vida simples era tudo que podia oferecer, mas a menina era pobre, não iria se importar. Com o coração cheio de sonhos e novas esperanças esperei e preparei o dia em que iria me achegar até sua casa. Certamente ela deveria ter um pai severo, uma mãe correta e quem sabe um irmão para espantar os pretendentes. Era preciso preparo, roupa nova, fala elegante e um bom presente para encantar a moça. Afinal, na certa, já houve outros pretendentes. E se esses outros não a conseguiram levar, é pois que estava esperando por mim.


Aprontei-me e aprumei o peito. Vesti a melhor roupa, comprada a prestação na loja da cidade, e fui ansioso a casa daquela menina. Bati, uma mulher com olhar severo veio atender. Sua mãe, imaginei. Não era. 

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AUTOR: Sávio Damato

ACIMA DE QUALQUER SUSPEITA



Zilda acordara bem cedo na manhã daquela quinta-feira. Estava um dia nublado, um leve frio. Perfeito para permanecer debaixo das cobertas. Desligou o despertador e olhou para o relógio de pulso colocado sobre o criado, ao lado da cama. Sorriu. Aquela era uma relíquia de família, sua avó repassara-o para sua mãe e agora era de Zilda. Quantas boas lembranças um objeto tão simples pode nos trazer, pensava ela, ainda admirando o relógio. Cinco minutos se passaram. Zilda espreguiçou novamente. Hora de levantar. Lavou o rosto, pegou o relógio e foi para a cozinha tomar café. Como de costume, preparou pão, queijo, presunto e ovo frito, acompanhados de suco de laranja sem açúcar.

– Bom dia, minha filha.
– Bom dia, mãe – cumprimentou satisfeita.

Zilda tinha agora cinqüenta e três anos. Estava quase se aposentando, mas gostava de trabalhar. Levantar todas as manhãs e pegar o ônibus até o prédio do Ministério Público lhe dava uma confortável sensação de utilidade. Fazia a diferença, ela sabia.
Terminado o café foi se trocar. Chegaria mais cedo hoje. Talvez caminhasse um pouco pela praça em frente ao escritório, aproveitando o ar fresco da manhã antes de entrar para o trabalho.
Ainda eram sete e vinte quando a porta se fechou e Zilda ganhou a calçada rumo ao ônibus, distante apenas dois quarteirões de sua casa. Desceu as escadas, caminhou, atravessou a roleta, esperou por um instante até que seu trem chegasse. Entrou. Sentou-se em um dos vários lugares vazios à janela. Ainda se lembrava da gostosa sensação que a visão do relógio lhe causara ao acordar. Sentia-o firme em seu braço e isso, de alguma forma, dava-lhe conforto, segurança.
O ônibus parou, ainda não era a sua estação. Várias pessoas entraram. Um homem veio e se assentou bem ao seu lado. Zilda permaneceu observando a janela. Estava deslumbrada com seus próprios sentimentos. Por reflexo olhou para o braço do relógio. Onde estava o relógio? Sua cabeça girou. Não podia, não havia como desaparecer. Estava ali há um minuto. Zilda levantou os olhos e deu de cara com o homem que se sentara ao seu lado. Ele sorriu satisfeito e virou o rosto para frente. Zilda, ainda sem entender, olhou para o braço do homem. Lá estava... O relógio, no braço do homem, de um desconhecido. Como podia? Como ele fez aquilo?
Furiosa, Zilda tinha de agir rápido ou o perderia para sempre. Em poucos segundos o ônibus alcançaria uma nova estação e o homem desapareceria com seu relógio no pulso, como se fosse dele, como se nada houvesse acontecido. Ela olhou para a bolsa, olhou novamente para o homem. Calmamente, sorriu. Ele sorriu de volta. 


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AUTOR: Sávio Damato

A menina e o anjo




Anjos, criaturas de essência mitológica, etérea, de sonhos. Seres alados, assexuados, com corpo humano e asas brancas semelhantes às dos pássaros. Segundo o dicionário, um ser espiritual que serve de mensageiro entre Deus e os homens.
Neste mundo de caos, é difícil entender a concepção de um ser maravilhoso que, com suas asas, voe sobre os problemas humanos sem sujar as penas branquinhas.
Se um dia, algum humano, digamos uma menininha, chegasse a encontrar com um anjo, tão distante que eles se encontram de nós, imagino que o diálogo seria mais ou menos assim:



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AUTOR: Sávio Damato